
ARTIGO
O Brasil e a sombra do narco-estado: quando o crime veste a farda da empresa
O crime organizado, em sua essência mais perversa, não prospera no vácuo

Avanço dessas organizações só é possível com algum grau de apoio, proteção ou, no mínimo, uma leniência estatal conveniente | Foto: Agência Brasil
Quando uma facção criminosa não apenas domina territórios, mas opera como uma sofisticada rede de franquias, erguendo empreendimentos e movimentando cifras bilionárias, a linha que separa o crime da economia formal se torna perigosamente tênue. A imagem que circula nas redes sociais, descrevendo a atuação de grupos criminosos com a desenvoltura de grandes corporações, é mais do que um alerta: é um espelho cruel da realidade brasileira, que nos força a questionar a profundidade da infiltração do poder paralelo em nosso tecido social e estatal.
O crime organizado, em sua essência mais perversa, não prospera no vácuo. Ele se enraíza e se expande nas fissuras de um Estado que, por ação ou omissão, permite sua ascensão. A tese é clara e incômoda: o avanço dessas organizações só é possível com algum grau de apoio, proteção ou, no mínimo, uma leniência estatal conveniente. A corrupção emerge, então, como o elo mais frágil e, ao mesmo tempo, mais resistente dessa cadeia. Políticos, policiais e membros do judiciário, cooptados ou intimidados, podem se tornar peças fundamentais em um esquema que garante a proteção do tráfico de drogas, armas e pessoas, além da lavagem de dinheiro que alimenta essa máquina perversa. O contraste com nações onde o Estado não transige com o poder criminoso, como os Estados Unidos, onde cartéis são rapidamente desmantelados ao tentar rivalizar com a autoridade, é gritante e doloroso.
A América Latina, infelizmente, oferece um panorama mais sombrio e familiar. Os exemplos da Colômbia e do México servem como um alerta vívido do que acontece quando governos se vendem ou simplesmente fecham os olhos. Nesses cenários, nasce o que se convencionou chamar de narco-estado: uma estrutura onde as instituições governamentais são tão profundamente infiltradas ou controladas por organizações criminosas que a soberania e a capacidade do Estado de exercer suas funções legítimas são comprometidas. A preocupação crescente é que o Brasil, com sua vasta extensão territorial e complexidade social, esteja caminhando para uma versão "disfarçada" ou "velada" desse modelo, onde o crime não apenas existe, mas opera em escala empresarial, protegido por um manto de corrupção e pelo silêncio conveniente de quem deveria combatê-lo.
As consequências dessa realidade são sentidas na pele de milhões de brasileiros. A violência urbana, a perda de controle sobre territórios inteiros, a desconfiança generalizada nas instituições e a erosão do Estado de Direito são apenas a ponta do iceberg. O custo social dessa negação é imenso, manifestando-se na perda de vidas, na destruição de famílias e na perpetuação de um ciclo de medo e impunidade. A frase "a diferença é que aqui muita gente finge que não vê" ressoa com uma verdade amarga, apontando para uma cumplicidade coletiva que, por inação ou desinteresse, permite que o poder paralelo continue a corroer as bases da nossa democracia.
É imperativo que a sociedade brasileira e suas lideranças enfrentem essa realidade com a seriedade e a urgência que ela exige. A luta contra o crime organizado e a prevenção de um narco-estado, mesmo que disfarçado, demandam uma ação coordenada, transparente e implacável. Não se trata apenas de combater criminosos, mas de resgatar a integridade das instituições e reafirmar a soberania do Estado. Somente assim poderemos despir o crime de sua farda empresarial e garantir que o poder oficial prevaleça sobre o paralelo, antes que o disfarce caia por completo e a verdade se revele em sua forma mais brutal.
