ARTIGO
ADPF 442: o guardião da Constituição não pode ser o árbitro da vida
Ação busca descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação
Supremo Tribunal Federal | Foto: Gustavo Moreno/STF
O recente freio processual imposto pelo Ministro Flávio Dino ao julgamento da ADPF 442, que busca descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação, oferece ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma oportunidade inestimável para reflexão. Mais do que suspender um julgamento, a medida deveria suspender o que se desenha como um dos maiores e mais perigosos episódios de ativismo judicial da nossa história: a tentativa de reescrever, por via togada, o conceito mais basilar de nossa ordem jurídica.
O placar de 2 a 0, formado pelos votos dos Ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, revela uma perigosa confusão hermenêutica entre o papel de juiz constitucional e o de legislador positivo.
Como constitucionalista, meu dever é analisar o tema não sob o prisma da moral, da religião ou mesmo da política pública — embora os argumentos em favor da descriminalização se disfarcem frequentemente desta última , mas sim sob a ótica estrita do que diz a nossa Lei Fundamental.
E o que ela diz é cristalino.
O artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, o coração de nossas cláusulas pétreas, estabelece a "inviolabilidade do direito à vida". Este não é um direito qualquer; é o pressuposto existencial de todos os demais. Sem a vida, não há que se falar em dignidade, autonomia ou saúde. A Constituição não faz qualquer ressalva quanto ao estágio de desenvolvimento, tempo de gestação ou condição social. A vida é, por definição constitucional, inviolável.
Os votos favoráveis à ADPF 442 tentam relativizar esse absoluto. Argumentam que a autonomia da mulher se sobrepõe ou que a criminalização é uma política pública falha, que penaliza desproporcionalmente os mais pobres. São preocupações sociais legítimas, mas que propõem uma solução constitucionalmente ilegítima.
Não se resolve um problema social — a vulnerabilidade da mulher pobre — aniquilando um direito fundamental de outro ser humano. A autonomia corporal, um princípio valioso, encontra seu limite jurídico e fático onde se inicia a existência de outro ser. E o ordenamento jurídico brasileiro é inequívoco ao reconhecer esse outro ser.
Nosso Código Civil (Art. 2º) assegura os direitos do nascituro desde a concepção. Mais importante, o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, que possui status supralegal. O Artigo 4º deste tratado é explícito: "Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção".
O STF, portanto, está sendo instado a declarar inconstitucional uma lei (os artigos do Código Penal) que, na verdade, está em plena conformidade tanto com a Constituição quanto com os tratados de direitos humanos que o Brasil se comprometeu a honrar.
O cerne da questão, contudo, é a separação dos poderes.
O debate sobre o aborto é complexo, sensível e divide a nação. Em uma democracia, questões desta magnitude moral e social devem ser tratadas na arena apropriada: o Congresso Nacional. São os representantes eleitos pelo povo que possuem a legitimidade democrática para debater exaustivamente e, se for o caso, alterar a legislação penal.
Quando o STF avoca para si essa responsabilidade, ele não está "interpretando" a Constituição; está a usurpando. Ele se transforma de guardião em legislador, violando a tripartição de poderes. Os votos dos Ministros Barroso e Weber, ao se basearem primariamente em argumentos de política pública (saúde, desigualdade), invadiram a competência do Executivo e do Legislativo.
A ADPF 442 coloca o Supremo diante de uma escolha fatídica: ser o Guardião da Constituição, reafirmando a inviolabilidade da vida como pilar do Estado de Direito, ou ser o Árbitro da Vida, decidindo, contra a letra expressa da lei e dos tratados, quem merece viver.
Espera-se que a pausa para reflexão sirva para reconduzir a Corte à sua função precípua, que é a de proteger os direitos fundamentais — e o primeiro deles é o direito de nascer.